28 dezembro 2011

Texto publicado no Diário de Leiria de ontem


No reino dos Kim

A recente notícia do falecimento do líder da Coreia do Norte trouxe-me à memória as duas vezes que estive no país, levado por afazeres profissionais. Confesso que estava algo apreensivo sobre o que me esperava num dos países mais fechados do mundo. Analisando agora, a alguns anos das viagens, percebo que o que retive foram as grandes diferenças, quase caricaturais, que encontrei. Na verdade o país é de tal forma fechado que os seus habitantes não conhecem do mundo mais do que os controladíssimos meios de comunicação social estatais permitem.

Na preparação da viagem tive a primeira surpresa: os telemóveis são proibidos. Devem ser declarados na fronteira e deixados à guarda contra recibo, sendo entregues à saída. Livros, CDs e outros suportes de informação são também escrutinados à entrada. Por infeliz coincidência, no dia da viagem e a caminho do aeroporto, ouço que fora criada uma lista negra de companhias de aviação impedidas de entrar na União Europeia, por falta das normas mínimas de segurança. Claro que a Air Koryo, companhia norte-coreana que fará a ligação Pequim-Pyongyang está nessa lista. Bela maneira de começar uma viagem!

O destino final era uma pequena localidade a três horas da capital, onde um enorme hotel de 12 andares em forma de pirâmide aguarda por turistas que nunca chegam. Durante a minha estadia tomei duas refeições diárias sozinho num restaurante com dezenas de mesas, onde um televisor passava incessantemente canções revolucionárias sobre imagens de manifestações e de monumentos glorificadores do regime. No mesmo hotel ficavam as tradutoras, o motorista e dois responsáveis da empresa que solicitou o trabalho – mas estes usavam outro restaurante a que não tive acesso. O hotel pretende servir a Exposição Internacional da Amizade, um complexo de dois edifícios que guardam presentes entregues por personalidades de todo o mundo aos dois líderes do país. No edifício dedicado a Kim Il-Sung vi prendas de Mao e Estaline (que incluíam automóveis blindados e carruagens de comboio), mas também couves em cerâmica das Caldas da Rainha.

As viagens entre o hotel e a fábrica mostraram-me um belíssimo país, de montanhas e florestas, que eu atravessava diariamente em estradas ensaibradas, mantidas por cantoneiros que dormiam a sesta à beira da estrada – que serviam um reduzidíssimo trafego automóvel. O cenário era bucólico, com pequenas casas à beira rio, animais a pastar e agricultura não mecanizada. Saltava, no entanto, à vista a pobreza em que vivia a população. Duas imagens ainda me vêm à memória quando penso no que via da janela do minibus: a primeira é a de um acidentado da construção civil a ser transportado numa padiola para algum posto de socorros; a segunda é de um camião a gasogénio (obtido a partir da queima de lenha) a avançar lentamente, coisa de que o meu pai me falava ter visto na sua infância, com condutor e manobrador, este último tratava da caldeira e calçava as rodas nas subidas mais ingremes. Nunca pensei ver um em funcionamento.

No complexo fabril, as paredes exteriores estavam pintadas com dizeres brancos sobre fundo vermelho, apesar das minhas tentativas ninguém me traduziu o que estava escrito, e de altifalantes instalados no exterior saiam a intervalos regulares o que pensei serem slogans revolucionários. No espaço livre entre edifícios, militares marchavam orgulhosamente. As tradutoras tinham um pequeno caderno onde assentavam todas as conversas que tínhamos e os operários da empresa não tinham autorização para falar comigo. Apenas no último dia, o engenheiro, com quem falei várias vezes por interposta pessoa, me disse ter estado em Cuba e falar espanhol.

Na minha última noite na Coreia do Norte, já em Pyongyang, consegui ligar para casa e soube de um recente atentado no metro de Londres (Julho de 2005). Nenhuma das pessoas que estava comigo tinha conhecimento do atentado. As publicações em inglês que encontrei (no avião e no hotel) falavam apenas de duas coisas: as grandes conquistas que o ideal Juche permitiam ao país e as atrocidades diárias cometidas pelos ocupadores norte-americanos contra o povo sul-coreano.

A última surpresa aconteceu algum tempo depois, já em Portugal, ao ouvir o deputado Bernardino Soares defender o regime norte-coreano e a sua “democracia”!

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